A Invenção de Hugo Cabret

por
  • RENATO SILVEIRA em
  • 05 março 2012



  • Em uma cena de “A Invenção de Hugo Cabret”, o protagonista, o menino Hugo (Asa Butterfield), relembra os últimos momentos que teve junto do pai (Jude Law). Neste momento, uma luz intermitente cobre o rosto do garoto, ao mesmo tempo em que escutamos um barulho semelhante ao de um projetor de cinema. Aqui, o que Martin Scorsese está nos dizendo fica muito claro: o cinema é a arte da memória.

    Scorsese também nos fala que cinema é a arte do tempo, dos 24 quadros por segundo. Não é à toa que há tantos relógios aparecendo durante a projeção. Tempo e memória são temas que dependem tanto um do outro neste filme, que o simbolismo das engrenagens serve tanto a essa leitura quanto a outras - como a de que cada pessoa tem seu propósito dentro da grande máquina que é o mundo, na visão de Hugo.

    Mais que um diretor, Scorsese é um preservador da sétima arte. Presidente da World Cinema Foundation, ele sempre faz questão de falar publicamente sobre a importância da recuperação e restauração de filmes que correm o risco de serem perdidos não só pela deterioração física provocada pelo tempo, mas também pelo simples esquecimento a que alguns diretores são condenados pelo próprio público.

    Em “A Invenção de Hugo Cabret”, que é baseado no livro homônimo de Brian Selznick, Scorsese fala desse processo de esquecimento e da importância da memória, utilizando um caso verídico: o do cineasta francês Georges Méliès, precursor do cinema narrativo e do uso de efeitos especiais. Você certamente o conhece pelo clássico de 1902 “A Viagem à Lua”, mas talvez não saiba que você só conhece esse filme porque alguém, lá atrás, resgatou Méliès do esquecimento.

    Ao mesmo tempo, Scorsese dá outras duas funções à “A Invenção de Hugo Cabret”. Por se tratar de seu primeiro filme realmente apropriado para o público infantil, trata-se de uma verdadeira aula introdutória de cinema, capaz de suscitar nas crianças uma verdadeira paixão pela sétima arte e reavivar nos adultos um sentimento que pode estar apagado. É um filme sobre o poder da História, com "H" maiúsculo, que está não apenas nos filmes, mas nos livros e nos museus.

    Além disso, este é o primeiro filme 3D de Scorsese, e o diretor dá um novo sentido ao uso da tecnologia que, desde “Avatar”, não tinha um representante realmente bom. Mas “bom” é pouco para o que Scorsese faz aqui. Como um verdadeiro apaixonado por cinema, era natural que ele abraçaria forte as possibilidades que o 3D oferece tanto em trazer o filme para "fora" da tela quanto em levar o espectador para "dentro" dela.

    No primeiro aspecto, Scorsese, diferente da maioria dos diretores que já usaram o 3D, é bem mais comedido e não "joga" coisas no espectador. Apenas em um ou outro momento algum objeto é apontado num ângulo que o faz "saltar" em nossa direção. O melhor uso, neste sentido, surge no lado lúdico - o focinho do Dobermann que acompanha o guarda interpretado por Sacha Baron Cohen talvez seja o melhor exemplo - e no lado inventivo e experimental, quando Scorsese decide apontar o feixe da projeção de uma sala de cinema a que Hugo leva sua amiga Isabelle (Chloë Moretz) diretamente contra o feixe real, que nos mostra o filme. Scorsese brinca.

    Mas é na segunda capacidade do 3D onde Scorsese realmente se esbalda. Ele não só retoma o uso dos magníficos planos-sequências que marcam vários de seus melhores trabalhos, como também explora a profundidade de campo que um plano plongée, por exemplo, oferece e que não ficava tão evidente em seu modo tradicional. Da mesma forma, Scorsese usa o 3D para potencializar as múltiplas camadas dos planos gerais (não visualizamos só frente-meio-fundo, mas o todo em uma profundidade contínua).

    Sem falar na própria forma como ele nos permite enxergar "dentro" da tela: logo no começo, quando Hugo observa as pessoas por trás dos relógios da estação de trem, o personagem de Ben Kingsley é enquadrado dentro de um dos números do relógio, meio desfocado, mas o ângulo escolhido por Scorsese e seu fotógrafo Robert Richardson funciona de tal forma que possibilita ao espectador ter o reflexo de esticar o pescoço para olhar lá dentro daquele buraco e reparar no senhor que está sentado lá embaixo.

    Em contraponto, que ousadia tomar todo o quadro para exibir "A Chegada do Trem na Estação" dentro de um filme 3D, exatamente com o propósito de mostrar que o "efeito 3D" estava lá desde o início, como um espanto natural do espectador.

    É aí onde o 3D assume seu papel narrativo em "Hugo". No momento em que Papa Georges (Kingsley) observa um desenho feito à mão se movimentar no bloco de notas, ao passar as páginas rapidamente como num flipbook, vemos que o desenho se tridimensionaliza - ou seja, é como se a cabeça do autômato fosse real e estivesse se virando para encarar (e assombrar) aquele senhor. Já em outro momento, vemos trechos de "A Viagem à Lua" projetados numa tela e as cenas também estão em 3D - porque, ali, o público é convidado não apenas a experimentar a sensação de quase ser atropelado pelo trem dos irmãos Lumière chegando à estação, mas a efetivamente entrar naquele mundo, a participar daquele sonho, que é o que Méliès queria.

    Scorsese conseguiu provocar esse efeito em mim já na sequência pré-título, que na prática poderia funcionar como um curta e eu já sairia feliz do cinema. Ao final do filme, vi que seria muito difícil não amar "Hugo", assim como é difícil não amar Scorsese e, logo, não amar cinema. O filme fala disso também.

    A INVENÇÃO DE HUGO CABRET (Hugo, 2011, EUA). Direção: Martin Scorsese. Roteiro: John Logan (baseado no livro de Brian Selznick). Fotografia: Robert Richardson. Montagem: Thelma Schoonmaker. Música: Howard Shore. Produção: Johnny Depp, Tim Headington, Graham King, Martin Scorsese. Com: Ben Kingsley, Sacha Baron Cohen, Asa Butterfield, Chloë Grace Moretz, Ray Winstone, Emily Mortimer, Christopher Lee, Helen McCrory, Michael Stuhlbarg, Frances de la Tour, Richard Griffiths, Jude Law. Distribuição: Paramount Pictures. 126 min

    5 comentários:

    William disse...
    Este comentário foi removido pelo autor.
    William disse...

    Não falando exatamente de Hugo, mas do 3D.

    Tenho visto alguns filmes em 3D ultimamente, e tenho notado que os mesmos economizam, diria até evitam, cenas em que os objetos "saiam" da tela. E vejo tbm, que os críticos, em geral, desdenham de filmes em que isso ocorra, principalmente em demasia. Os críticos, em geral, parecem valorizar somente o 3D em que é realçada a profundidade de campo, que "entra" tela adentro, aquelas em que nossa tela parece muito mais ser uma janela real, pela qual vemos através.
    Eu acho uma pena que haja menos filmes com coisas saltando, se projetando para fora da tela, objetos que parecem que vem ao nosso encontro, que vão nos acertar senão desviarmos... Acho que deve ser o meu lado menino falando mais alto; mas para mim filme em 3D é para sair da tela, principalmente, e não somente "entrar" tela adentro. O efeito de profundidade tela adentro é bonito, legal; mas quando não há, ou há poucos, objetos saindo da tela, eu não sinto que realmente vi um 3D :>)... Eu quero é ser "nocauteado" por um objeto jogado na minha cara, pô! :>)... Claro, uma boa história deve ser contada, também.

    William disse...

    Eu ainda quero ver (ou eu mesmo vou fazer :) ) um filme em que toda a ação/personagens/objetos ficam do lado de fora da tela (tipo o holograma da Princesa Leia, mas em alta resolução) :>)... Um em que, quando um personagem der um golpe de espada para cortar a cabeça do seu inimigo; eu me abaixe com medo de que minha cabeça (de vento) é que seja separada do meu pescoço :>)...
    Um "3D ("para fora da tela") extremo"

    Ok, Renato, pode começar a pensar a novamente dar um tempo no blog, já que é esse tipo de leitor/comentarista que ele atrai :>)

    Joseph disse...

    Bela crítica, Renato! Eu geralmente torço o nariz para o 3D, mas adorei a utilização da tecnologia em Hugo. Abraços.

    Erasmo Penteado Neto disse...

    Que belíssima resenha! Renato, será que é possível você colocar essa matéria no CeC para enriquecer o site? Seria muito bom, obrigado. E parabéns, cada vez mais crescendo nos seus textos. (Ps.: Chupa, Pablo!)

     
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