Vocês conhecem o famigerado "truque do lençol branco": sempre que há uma cena de sexo em um filme (na maioria dos casos, americano), a mulher aparece coberta após o ato, como se fizesse questão de esconder os seios, mesmo que seja de seu marido. E o mesmo vale na situação inversa, com o homem se cobrindo. Malditos puritanos.
Se existe algo que me irrita mais em cenas de sexo do que o lençol branco são as elipses pré-coito. Tivemos um exemplo recente, muito frustrante, em “Cruzada”. E, para piorar, foi com a Eva Green, aquela deusa (quem viu “Os Sonhadores” sabe que a atriz não faz restrições quanto à nudez na tela). O engraçado é que o Ridley Scott não quis mostrar ela transando com o Orlando Bloom, mas não se acanhou na hora de esfregar nossa cara nas feridas dos soldados.
“9 Canções”, do sempre surpreendente Michael Winterbottom, faz justamente o inverso dos filmes americanos nessa questão. É um romance, uma história sobre um sujeito que está fazendo um trabalho na Antártica, e, em sua solidão, relembra momentos marcantes que passou com uma recente namorada: os passeios, os shows a que foram juntos, as trivialidades e, claro, o sexo. Só que em vez de usar elipses nas transas, Winterbottom subverte: corta a conversa fiada fora e mostra o que interessa.
Muitos têm dito que não passa de um filme pornográfico. Sim, vemos sexo explícito na tela, com os protagonistas praticamente encenando o Kama Sutra em certos momentos. Há tomadas de gozo. E até masturbação. Tudo filmado de perto. Sem cortes. Você vê entrando e saindo mesmo. Apesar de tudo isso, não acho correto dizer que se trata de pornografia. Por mais que filme de sacanagem tente inventar uma historinha só para não ficar na orgia despropositada, é óbvio que seu objetivo é único e exclusivamente mostrar gente (em alguns casos, animais também) transando. A proposta de “9 Canções” é bem diferente.
Primeiramente, trata-se de uma experimentação. E, sendo assim, alguma barreira tem que ser quebrada. Winterbottom quis contar uma história de amor através do sexo. Sua ousadia está aí. Depois, fica claro (pela narração em off, as músicas e as conversas do casal) que o filme possui um fio narrativo: Matt sente falta de Lisa e, por mais que seu relacionamento com ela tenha se baseado principalmente em transas fantásticas, ele estava começando a se apaixonar. Quando ela teve que partir, “o amor me queimou por dentro” (verso de “Love Burns”, da banda Black Rebel Motorcycle Club, a última das nove canções do título).
Mas, talvez, o principal que se deva notar é que Kieran O’Brien (Matt) e Margo Stilley (Lisa) estão longe de serem exemplos de extrema beleza. São pessoas comuns, que vão a shows de rock, saem com os amigos e, assim como as pessoas que estão do lado de cá da tela, fazem sexo. Winterbottom está nos contando uma história que acontece na vida real, com personagens que existem na vida real.
Essa aproximação com a realidade também está na direção, já que Winterbottom filma o sexo compondo belos quadros, mas com uma câmera mais participativa do que contemplativa. E ele tem o cuidado de criar um clima para as cenas, especialmente através da fotografia, adotando um esquema de cores quentes – o que também beneficia as sequências dos shows e cria um contraponto com os planos aéreos na gélida Antártica, onde o branco predomina.
O cineasta também tenta estabelecer um lirismo no longa, especialmente no contraste. Pólo Sul vs. Londres. Frio vs. calor. “Explorar a Antártica é sentir claustrofobia e agorafobia ao mesmo tempo – como duas pessoas na cama”, Matt reflete em certo momento. Quer dizer, é sentir-se tão pequeno diante de algo tão grande, é não conseguir mensurar o limite entre seu corpo e o da outra pessoa. Além disto, pode-se inferir que as memórias de Matt se devam também a uma necessidade de se sentir aquecido no meio de todo aquele gelo. E lembranças de uma boa transa podem mesmo nos esquentar, física e psicologicamente. Não só as lembranças do sexo remetem ao calor, como também as dos shows: os dois no meio daquela multidão, o contato com outras pessoas, tudo evoca uma sensação de quentura.
Na verdade, “9 Canções” não precisa ser levado tão a sério. É mais um manifesto do que uma quebra de tabus. O filme não tem pretensão de ser revolucionário. Winterbottom quis só mostrar que sexo também pode ser cinema. Alguns (ou muitos) podem achar que é apenas uma tentativa barata de satisfazer olhares voyeurísticos. Talvez você se sinta ofendido, talvez não compre a ideia. Mas acho que é o caso de se refletir sobre o que tem sido mostrado na tela ultimamente.
Por que a maioria das pessoas não se choca mais com a violência no cinema, a ponto de achar “Sr. e Sra. Smith” divertido? É porque tudo se tornou banal. Qual o problema de filmar duas pessoas transando? Por que o sexo se tornou mais ofensivo do que a violência? Numa boa, eu prefiro pagar por um filme em que dois desconhecidos transam durante 80% da projeção a ver Brad Pitt e Angelina Jolie se matando – para, no fim, toda a tensão sexual entre eles ser liberada em uma elipse.
“9 Canções” é, enfim, a mais atual versão do bordão “faça amor, não faça guerra”. Nesse sentido, o filme possui um grande valor, porque é uma antítese do cinema moralista, sem ser imoral. Estamos vendo duas pessoas se amando. Se há algum mal nisso, está no ponto de vista de quem assiste.
As 10 Canções de "9 Canções"
01 Black Rebel Motorcycle Club - Whatever Happened To My Rock 'n Roll
02 The Von Bondies - C'mon C'mon
03 Elbow - Fallen Angel
04 Primal Scream - Movin' On Up
05 The Dandy Warhols - You Were the Last High
06 Super Furry Animals - Slow Life
07 Michael Nyman - Nadia
08 Franz Ferdinand - Jacqueline
09 Black Rebel Motorcycle Club - Love Burns
FAIXA BÔNUS
10 Elbow - I've Got Your Number
Texto publicado originalmente em 25 de junho de 2005.
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