Abraços Partidos

por
  • RENATO SILVEIRA em
  • 04 dezembro 2009



  • Quantos cineastas não falaram sobre o próprio ofício em seus filmes em 2009, não? Miguel Gomes e sua carta de amor ao cinema em "Aquele Querido Mês de Agosto". Michael Mann e a força do ícone em "Inimigos Públicos". Quentin Tarantino e a imagem como arma em "Bastardos Inglórios". Eduardo Coutinho e o eterno embate ficção/realidade em "Moscou". Kiko Goifman e a provocação do medo em "FilmeFobia". Isso sem falar em Takeshi Kitano com seu "Glória ao Cineasta!", que só estreou em circuito este ano no Brasil.

    "Abraços Partidos", de Pedro Almodóvar, fecha esta temporada em que o cinema foi seu próprio espelho. Estariam os cineastas refletindo sobre seus caminhos ou seria a própria arte pedindo uma revisão? Sem dúvida, o século da imagem deixou uma baita herança para diretores de diferentes gerações, que hoje se encontram numa época ainda mais proeminente quanto à presença de telas, dos mais variados tipos e tamanhos, em nosso cotidiano. E é ótimo ver um veterano como Coutinho tão imerso num processo de redescoberta dos significados que uma câmera consegue produzir, assim como ver Gomes se encantar com as possibilidades que surgem à sua frente enquanto filma. Ao mesmo tempo, temos Mann na convergência da tecnologia, entre a película e o digital, enquanto Kitano claramente promove uma sessão de auto-análise em seus três últimos filmes.

    Chegamos, então, a Tarantino e Almodóvar, cineastas que sempre usaram referências cinematográficas em seus trabalhos. Ambos tiveram seus filmes exibidos no Festival de Cannes deste ano e ambos foram saraivados por acusações de estarem se repetindo e se auto-reverenciando. É verdade que os dois, em dado momento do mar de citações, voltam a câmera para suas próprias carreiras (no caso de Almodóvar, ele praticamente recria uma cena de "Mulheres à Beira de um Ataque de Nervos"). E, sim, esses diretores seguem cartilhas específicas. O que não se pode confundir é repetição com fidelidade de estilo.

    "Abraços Partidos" não é o melhor Almodóvar, assim como "Bastardos Inglórios" não é o melhor Tarantino. E nunca precisaram ser. Há essa expectativa de que grandes diretores irão se superar a cada trabalho, o que é natural quando se fala de alguém competente, mas a noção de fracasso quando esse "melhor" não vem é que é injusta. E "Abraços Partidos" se torna um grande filme graças, justamente, a seus "melhores momentos", e não por seu conjunto, que é desequilibrado.

    A história em si não é lá muito inspirada e se perde mais ou menos após uma hora e meia, quando Almodóvar parece preocupado demais em criar um gancho dramático para a conclusão. Mas nessa narrativa, em meio a histórias de paixões súbitas e não correspondidas, revelações de família, vinganças pessoais e redenção (o Almodóvar básico), estão cenas sublimes, imagens que só mesmo o cinema - e cineastas do garbo de Almodóvar - conseguem criar. O sexo no sofá. A lágrima que cai no tomate. A transa sob o lençol. Páginas ao vento. Um quebra-cabeça de fotos picotadas. É o banal transformado em extraordinário. Existe, enfim, um espírito vigoroso em cada fotograma (ou em cada quadro, para não correr o risco de o termo ficar datado na era digital) quando se fala em esvaziamento. A TV pode estar contando histórias melhores hoje, mas não detém o mesmo poder que uma dessas pequenas sequências de "Abraços Partidos" consegue exercer sobre o espectador interessado em expressão visual. E são cineastas, como Almodóvar e Tarantino, verdadeiros guerreiros por acreditarem piamente nessa distinção.

    Insisto ainda na relação entre Almodóvar e Tarantino: creio que a dita "repetição" a que os dois incorrem está mais para um aprofundamento, uma evolução natural de seus estilos. Seria repetição se eles não trouxessem algo novo. Mas quando vemos o uso do cinema como personagem em "Bastardos Inglórios" não estamos diante de algo inédito? Tarantino usa todas as suas "marcas registradas", mas, no ato final, ele está claramente fazendo um manifesto sobre aquilo em que acredita: na força do cinema, força esta que o fez ser cineasta. Há algo sendo dito ali. O mesmo com Almodóvar: "Abraços Partidos" é reconhecível a milhas de distância, mas o diretor demonstra uma preocupação em falar sobre a imagem que, até então, não havíamos visto em seus trabalhos. É de onde surgem outros "melhores momentos" que engrandecem o longa. O teste de maquiagem de Penélope Cruz (que também serve para Almodóvar enaltecer sua declarada adoração pela atriz, que aqui tem até mesmo os ossos filmados num exame de raio-x). A obsessão do filho em documentar a tragédia da família. O homem que se vê duplamente traído ao ser encurralado pelas duras palavras de sua mulher e da imagem dela projetada na parede. O ex-cineasta, agora cego, que toca com a ponta dos dedos a imagem de sua amada numa tela, como se pudesse lê-la identificando cada granulação como um ponto do Braille. Esta cena, aliás, constitui não só uma bonita rima visual: é a própria poesia.

    nota: 7/10 -- vale o ingresso

    Abraços Partidos (Los Abrazos Rotos, 2009, Espanha)
    direção: Pedro Almodóvar; roteiro: Pedro Almodóvar; fotografia: Rodrigo Prieto; montagem: José Salcedo; música: Alberto Iglesias; produção: Esther García; com: Penélope Cruz, Lluís Homar, Blanca Portillo, José Luis Gómez, Rubén Ochandiano, Tamar Novas, Ángela Molina, Chus Lampreave, Kiti Manver, Lola Dueñas, Mariola Fuentes; estúdio: El Deseo, Universal International Pictures; distribuição: Universal Pictures. 127 min

    6 comentários:

    Thiago disse...

    Ainda não vi o filme, mas adorei a crítica.

    Natália Ranhel disse...

    Que bom que você escreveu exatamente o que eu venho pensando, porém sód e ver o trailer e ler alguns comentários em jornais. Quando um filme começa a ser divulgado com todos dizendo que "será polêmico" eu já fico com um pé atrás, as chances de cair em contradição são grandes.
    A curiosidade de comprovar com meus próprios olhos é grande, mas o medo de perder meu tempo é maior ainda.

    Marcos disse...

    Olá Renato,

    Sou leitor do cinematório e sou cinéfilo de carteirinha. Eu estou mandando esse email porque estou trabalhando numa empresa que desenvolveu um portal sobre cinema - o Cinema Total (www.cinematotal.com). Um dos atrativos do site é que você cria uma página dentro do site, podendo escrever textos de blog e críticas de filmes. Então, gostaria de sugerir que vocês também passassem a publicar seus textos no Cinema Total - assim vocês também atingem o público que acessa o Cinema Total e não conhece o cinematório.

    Se vocês gostarem do site, também peço que coloquem um link para ele na seção ".links" do cinematório.

    Se vocês quiserem, me mandem um email quando criar sua conta que eu verifico se está tudo ok.

    Um abraço,
    Marcos

    Felipe disse...

    Engraçado que eu achei "Abraços Partidos" o filme "menos Almodovar" do Almodovar. E muita gente falando que ele se repetiu.
    Acho que ele experimentou, isso sim. Arriscou e muito. Sem dúvida ele fez um grande filme, não sei se é o melhor, é o tipo de filme que além de merecer PRECISA ser visto uma segunda vez.
    Assim como "Volver", resolvi assistir "Abraços Partidos" sem ler nada sobre... nem sinopse, e mais uma vez uma grande surpresa (melhor, eu diria). O Almodovar disse que seu filme mais complexo. Concordo. Saí da sala com essa sensação e por isso é tão difícil "dar uma nota" à "Abraços Partidos".
    Muito boa sua crítica e a relação com "Bastardos Inglórios". Tarantino, esse sim, se repetindo no bom sentido, mas fazendo um filme brilhante.

    Vinícius disse...

    Ah, Renato, de longe o melhor texto que li sobre "Abraços Partidos". Adorei o filme e, assim como você, também me encantei com a "preocupação em falar sobre a imagem" deste novo Almodóvar. Um dos melhores filmes do ano, pra mim.

    Valeu!

    Atena disse...

    Assisti ao "Abraços Partidos" ontem e achei sua crítica excelente. Acredito que esse filme muito 'visual' do Almodóvar (em contraposição ao protagonista cego) guarda muita relação com o novo hobby que estava exercitando à época da criação do filme, a fotografia. E de fato esse é o ponto alto do filme, imagens poéticas e sensoriais, embora o roteiro realmente não seja um dos melhores.

     
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