Tropa de Elite

por
  • RENATO SILVEIRA em
  • 27 outubro 2007


  • Independente de suas qualidades cinematográficas, “Tropa de Elite” se tornou o centro das discussões no último mês devido à forma como a polícia carioca é retratada por José Padilha. Se há um debate corrente que quer esclarecer se os policiais do BOPE são heróis ou não, se a PM é tão sórdida quanto o tráfico ou não, a única coisa que ficou clara até agora é que o papel daqueles que deveriam garantir a segurança da sociedade é, hoje, o de gerar insegurança. Quando você vê um policial na rua, você se sente protegido ou ameaçado? Honestamente? Eu não sei responder.

    A cena-chave de “Tropa de Elite” talvez seja o debate entre os alunos na sala de aula, no qual a maior parte da turma passa a condenar o abuso de poder da polícia, enquanto apenas um deles, Matias (André Ramiro), a defende, já que faz parte dela e sua maior preocupação é se tornar um policial honesto. “Se tornar”, afinal, Matias é jovem e idealista. Não é à toa que o último plano do filme é uma tela em branco que surge no auge da tensão e do clímax da história deste personagem (cuja função de coadjuvante ou protagonista é discutível). O que ele decidiu fazer? No que ele vai se transformar dali em diante? Ou coloquemos de outra maneira: no que nós, do lado de cá da tela, vamos pensar a respeito de tudo aquilo que nos foi mostrado?

    Padilha deixa a tela em branco para que o espectador a preencha. Ele deliberadamente não termina o filme, pois sabe que aquela história não acaba ali e que sua função não é tirar conclusões ou dar respostas. Talvez seja por Padilha colocar o dedo do espectador no gatilho, ali, naquele momento, que tantas discussões têm surgido, afinal, é inegável que a maior parte das pessoas assiste a um filme esperando que ele lhe fale alguma coisa, e não o contrário.

    Não acredito que “Tropa de Elite” seja um filme perigoso. Talvez a palavra mais adequada seja “difícil”. É um filme feito para instigar o debate, mas sabemos que é muito pouco provável que as pessoas sairão de um multiplex de shopping (onde exibições duplas ou triplas do longa acontecem simultaneamente) e farão uma rodinha para conversar sobre o que viram. Vão falar é do Capitão Nascimento e incorporar seus jargões no dia-a-dia – igualzinho aconteceu com um certo Zé Pequeno cinco anos atrás.

    Não estou querendo dizer que o público é burro, não. É uma questão cultural mesmo, todos sabem disso: o público brasileiro não debate cinema. Entendo perfeitamente uma pessoa que assiste a “Tropa de Elite” e diz que “tem que fazer é isso mesmo com bandido”. Na minha casa eu ouço esse tipo de coisa, e olha que ninguém lá viu o filme ainda. Mas a questão é: Padilha também pensa assim?

    Acho que o maior mérito do diretor, afora sua habilidade técnica, é justamente não deixar clara uma posição. A frase de divulgação, “Uma guerra tem muitas versões”, é perfeita, porque estamos no meio de uma guerra civil em que nem mesmo a sociedade sabe se posicionar direito. Por que, então, um filme (e “Tropa de Elite”, por melhor ou pior que seja, é apenas um filme), deveria dizer o que é certo e o que é errado? Esse tipo de pensamento maniqueísta é que exime qualquer debate de propósito. O filme é de esquerda ou de direita? Capitão Nascimento é herói ou não é? Puxa vida, o que isso realmente importa?

    Sobre essa questão do heroísmo do Capitão Nascimento, primeiro temos que nos perguntar que tipo de heroísmo é esse de que se fala. E existem tantas definições, que não fica muito claro aonde se quer chegar. Segundo os principais dicionários brasileiros, o conceito de herói (do latino heros... do grego héros...) presume que se fala de “pessoa que por qualquer motivo é centro de atenções”, ou “protagonista de qualquer aventura histórica ou drama real”, ou “indivíduo notabilizado por sua coragem, tenacidade, abnegação, magnanimidade etc.”, ou “indivíduo capaz de suportar exemplarmente uma sorte incomum (p.ex., infortúnios, sofrimentos) ou que arrisca a vida pelo dever ou em benefício de outrem”, ou “homem que se distingue por coragem extraordinária na guerra ou diante de outro qualquer perigo”, ou “indivíduo que desperta enorme admiração; ídolo”, e por aí vai.

    Capitão Nascimento se encaixa em qualquer um desses enunciados, logo, é o herói do filme. O problema, creio eu, não é ele ser um herói, mas ser um herói falho de uma história que acontece muito próxima da nossa realidade (e quando digo “nossa” me refiro à realidade brasileira – ou alguém acha que haverá tanta celeuma lá fora e o longa não será considerado o sucessor de “Cidade de Deus” como novo melhor filme brasileiro?). Além disso, Nascimento faz parte do BOPE, que, acima de qualquer eufemismo, é um grupo de extermínio. Aí, sim, o terreno se torna perigoso. Uma coisa é ver James Bond matar terroristas, outra completamente diferente é colocar Wagner Moura como torturador de pivete. Mas vai saber se o espectador comum que assiste aos dois filmes no mesmo cinema terá essa percepção?

    “Tropa de Elite” pode acabar se tornando um filme sem lugar fixo: virou um grande fenômeno comercial, mas na consciência do público (espectadores e crítica) talvez continue vagando entre pontos de vistas que vão de um extremo ao outro. Aliás, em duas conversas sobre o longa, ouvi duas pessoas da crítica se posicionarem de formas opostas em relação ao filme anterior de Padilha, “Ônibus 174”: uma dizendo que o documentário apóia a execução do seqüestrador, outra que Sandro é retratado como vítima do sistema; já eu vejo um pouco de cada coisa, mas não penso que o filme se resuma apenas a questões deterministas dessa forma.

    Quanto a “Tropa”, não o vejo como enaltecedor da violência em nenhum momento. Pelo contrário, através da narrativa scorsesiana adotada por Padilha, vejo Capitão Nascimento como o fio condutor da história, tal como o personagem de Ray Liotta em “Os Bons Companheiros” (que, nem por isso, é considerado uma apologia ao tráfico e à máfia, é?). Claro que somos instigados a torcer por Nascimento, já que ele é o policial honesto, atormentado pela natureza de seu trabalho e pelas conseqüências causadas em sua vida pessoal. Ainda por cima, é interpretado por um ator carismático. É engraçado vê-lo coordenando o curso de recrutamento? Sim. Tanto é que o parafraseei neste texto. Mas você ri quando, em outra cena, ele chega em casa transtornado e grita com a esposa como se ela fosse um subordinado incompetente ou um fogueteiro do morro?

    “Tropa de Elite” deve ser entendido nesses aspectos. Seu herói é um herói questionável, e existem outros no filme que não são apenas da polícia. Por que ninguém problematiza o heroísmo do traficante que acredita manter a paz na favela, ou da estudante que dirige uma ONG, mas não dispensa um bequezinho, ou do policial estudante que coloca a vida dos colegas em risco ao esconder sua profissão, ou do “aspira” que faz uso da corrupção para o “bem” da polícia e acaba colocando um parceiro em perigo? Querer que um filme que, acima de tudo, fala sobre questionamentos de caráter, moral e ética diga alguma coisa, é vê-lo da forma errada. Quem tem que dizer algo (não digo nem “fazer algo”, pois seria utopia) somos nós. O problema, repito, é: o público brasileiro está preparado para debater?


    nota: 10/10 -- veja no cinema e compre o DVD

    Tropa de Elite (2007, Brasil), dir.: José Padilha. Com Wagner Moura, André Ramiro, Caio Junqueira, Milhem Cortaz, Fernanda Carvalho, Fábio Lago e Maria Ribeiro. 118 min – em cartaz nos cinemas

    8 comentários:

    Anônimo disse...

    Caríssimo,

    Têm algumas coisas que não concordo tanto. Concordo que não há de se falar em determinismo, mas perguntar ou afirmar que o brasileiro nao está preparado para debater é, sim, algo determinista.
    O brasileiro está pronto para debater sim. Tanto que debate. Agora, se questões culturais direcionam seu posicionamento, isso não é ausência da capacidade de debate.
    Existe uma característica ainda ibérica do brasileiro de ter um preconceito muito grande contra pobre. A figura do Cap. Nascimento é o exemplar patriarca que a elite precisa. O brasileiro tem dificuldades de exercer sua autonomia. Quando aparece alguem na tela dizendo o que se deve ou não fazer, por mais que seja errado, gera um tipo de admiração. É claro que essa definição de brasileiro tem de ser relativizada, eis que vivemos em um país de extensões continentais.

    Existem vários aspectos a se argumentar. Não cabe a mim, como um simples leitor, escrever tudo nesse comentário.

    Grande Abraço,

    Ramon

    Anônimo disse...

    Excelente texto. Infelizmente, o público brasileiro não está preparado para debater as questões que dizem respeito ao próprio umbigo. Sabemos muito bem falar dos outros, criticar os outros, mas não somos capazes de fazer uma auto-crítica sincera.

    Anônimo disse...

    Rena, querido,antes de tudo, muitas saudades!!
    Saiba que adorei seu texto! E o que achei extremamente interessante é que seu debate é muito mais sociológico, antropológico, filosófico do que crítico-cinematográfico.
    Se você que escreve sobre cinema deixou de lado os planos, os cortes, o som, os comentários sobre as idas e vindas da câmera, acho que este é um bom exemplo que que o diretor acaba, mesmo que por caminhos tortuosos, incitar o debate sobre a realidade que vivemos hoje. E se foi a isso que Padilha se propôs, acho que realmente ele está atingindo o objetivo. Como vc mesmo disse, é óbvio que nos corredores dos multiplex, quase ninguém estará discutindo a questão intrínseca do tema (gastei, né?). Mas se pelo menos tem gente comentando "Tropa", seja nos sites, nas rádios, nos blogs, isso já é um início pra, pelo menos, termos a esperança de que é possível ter esperança de que pode existir um dia, um possível dia onde se comece um debate social, político e cultural sobre nosso país.
    Agora, falando efetivamente sobre "Tropa", amei, amei, amei o longa. Sou fã incondicional do Wagner Moura (já deve ter visto mil fotos dele no meu blog) que pra mim tá incrível no papel.
    Mas não podemos deixar de aplaudir Caio Junqueira, com sua extrema obsessão; André Ramiro e seu crescimento ao longo do filme, interpretando tão bem e demonstrando a evolução da raiva de seu personagem, não sei se é o Milhem Cortaz, mas aquele capitão Fábio também, com todo traquejo de policial corrupto... Fantástico!!
    Só posso dizer que José Padilha foi muitooooooo feliz e acho que em 10, como vc disse, a nota é 10 mesmo e vale ver duas vezes no cinema.
    Bjs!

    Anônimo disse...

    O público do Brasil não está preparada para discutir?

    Que prepotência! Então devemos nos calar e deixar o "povo" a esmo pq eles não são capazes de entender e argumentar?

    Essa afirmação é absurda. Nunca o brasileiro se engajou tanto em debates como agora. A evolução é notável e acredito que estamos no caminho certo. Tropa de Elite só veio a confirmar isso.

    Sobre a polêmica do filme:

    Os brasileiros são considerados por muitos, pessoas sacanas, que quase sempre levam as coisas na brincadeira. Eu já acho que, às vezes, levamos tudo à sério demais.

    Qual é o mal em ter como personagem principal de um filme um personagem com caráter duvidoso ou com uma moral distorcida?

    É cinema, ora! E mesmo sendo fundamentado na realidade, o filme não deixa de ser uma obra ficcional!

    O Hannibal come gente. Eu, particularmente, acho isso horrível!!

    Mas mesmo assim, ele é um dos meus personagens favoritos do cinema, assim como o Alex (Laranja Mecânica) que é estuprador, agressor e assassino.

    Capitão Nascimento é o nosso Darth Vader.
    Ou ainda, nosso Dirty Harry, Buddy White ou Popeye Doyle.

    Essa polêmica toda é, na minha opinião, uma conseqüência que mostra um dos principais defeitos da indústria cinematográfica brasileira, que se resume um pouco na "lei" que diz que "filme, no Brasil, tem que ter engajamento social".

    Uma ova! A arte não pode se prender a um parâmetro desses, mesmo que intenção seja a melhor possível.

    Eu encaro Tropa de Elite mais como filme de ação até do que como obra reflexiva. Sinceramente, a crítica social imposta no filme não sai do lugar comum. Tem algo ali novo pra você?

    O filme não é inovador, nem nada. A polêmica está no fato de que as atitudes do capitão Nascimento agradam, sim, a grande parcela do público. Parcela essa que não agüenta mais viver à mercê do tráfico e da violência e que é capaz de aceitar qualquer ato para ter um pouco mais de paz e tranqüilidade. Sabemos que indivíduos acuados tendem a atos e pensamentos violentos.

    A culpa disso não é do diretor, do ator ou do cinema em si. A culpa é das autoridades que não tomam as providências necessárias para resolver o problema.

    Quem vê no filme algo fascista é pq tem idéias fascistas.

    Tem gente que adora procurar chifre em cabeça de cavalo, cara.

    =(

    RENATO SILVEIRA disse...

    Não me entendam mal. Eu não afirmei que o público brasileiro não está preparado para debater. O texto termina com um ponto de interrogação (e discordo que seja uma pergunta determinista, visto que a fiz para provocar os comentários e já a rebateram duas vezes aqui).

    Lá em cima, eu disse que o público não debate, o que é fato. Nós que estamos falando do filme aqui no blog, em outros sites, com os amigos etc, somos a minoria. Os milhares de espectadores do filme não estão pensando e debatendo sobre ele. O eu acho que não deixei claro no texto (e peço desculpas por isso), é que o público que não debate é o público médio, que não tem formação cultural para o tipo de debate que o filme propõe. Não é nenhum absurdo dizer isso. As pessoas estão falando de "Tropa"? Sim, ótimo! Acho muito bom mesmo que o filme esteja provocando isso. Mas o que eu mais ouço na rua (e não nos sites, rádios, TVs e rodinhas) é gente falando que Capitão Nascimento é isso ou aquilo, que bandido tem que morrer mesmo etc. Isso não é debate. Aí é que mora o perigo de um filme mainstream como esse.

    E, Ramon, não tem dessa de simples leitor... Vamos conversar, ué. Esse espaço aqui é para isso.

    []s!

    Anônimo disse...

    Isso é verdade, Renato. O que mais ouço mesmo é essa beatificação do capitão Nascimento e a afirmação que "bandido bom é bandido morto". Mas eu até entendo o porquê disso. A população está abandonada pelas autoridades, então ela apela para qualquer um que possa "solucionar" o problema, não se importando com seus métodos.

    Lamentável, mas sem dúvida reflete a realidade violenta da maioria dessas pessoas.

    Flavia disse...

    Adorei o filme. Mostra o quanto o cinema nacional cresceu, e além disso, mostra sem romantismo o morro carioca.
    Quem assistiu Cidade dos Homens sabe do que eu estou falando.
    Se a polícia é boa ou ruim não foi essa a dúvida que saí do cinema. Na minha cabeça pregava outra pergunta: O que o ser humano não faz para sobreviver? Para ter paz? Para ter vida? Mesmo que isso signifique tirar a sobrevivência, a paz e a vida de outra pessoa.

    Bjs

    Rafael Carvalho disse...

    Também concordo com o Renato quanto ao fato do público se predispor para discutir o filme. O sucesso comercial que alcançou o fez uma espécie de acontecimento tal que mais importa ver o filme (já que todo está vendo) e não necessaiamente refletir sobre ele. Pra se ter uma idéia, na sessão onde eu estava tinha um senhor na poltrona atrás de mim, que toda vez em que alguém era torturado, ele caia na gargalhada. Sim, ele tava rindo como se fosse estivesse assistindo a uma comédia romântica. Mesmo assim, não podemos generalizar, pois discutir o filme é justamente o que estamos fazendo, mas somos uma minoria, sim.

    Sobre o papel da policia no filme e de como é mostrada, penso que o filme traz algo de novo ao acresentar um ponto de vista que parte de dentro da própria policia, coisa rara no nosso cinema. E a idéia de heroísmo é bastante questionável, pois não há bons e maus na história, não há maniqueísmo (embora algumas pesssoas se afeiçoem e defendam as atitudes do Cap. Nascimento). De qualquer forma, tropa de Elite é um soco no estômago e um material que merece muito ser discutido. Parabéns pela análise Renato!!

     
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