As Aventuras de pi

por
  • RENATO SILVEIRA em
  • 29 dezembro 2012



  • A fé, por definição, está ligada à religião, mas também significa ter confiança, credibilidade, compromisso. Significa acreditar. E no cinema, acreditar é fundamental. O realizador tem que confiar no seu trabalho e acreditar no resultado de seu filme para que nós, espectadores, possamos crer no que estamos vendo na tela.

    Esta fé cinéfila, em especial no cinema de espetáculo de Hollywood, abalada por um sem número de grandes produções que se valem apenas de números (cifras, partes um, dois, três, quatro ponto dois...) para serem consideradas tais, é recuperada por Ang Lee com “As Aventuras de Pi”.

    A história é aquela de sobrevivência em circunstâncias inacreditáveis – no caso, a de um garoto indiano chamado Pi (apelido que ele mesmo se deu por considerar que ser conhecido pela constante matemática seria melhor do que pelo nome de batismo, Piscine, advindo de uma luxuosa piscina pública francesa que seus pais frequentavam). Pi perde a família em um naufrágio e acaba sozinho em um bote na companhia de uma zebra, um orangotango, uma hiena e um tigre. As “aventuras” do péssimo título brasileiro (a tradução correta seria “A Vida de Pi”, como o livro de Yann Martel) se dão naquele espaço confinado e são narradas pelo protagonista a um escritor, alter ego do autor do livro.

    O velho chavão diz que “o cinema é feito de 24 mentiras por segundo”, e o que determina o quanto nós acreditamos nelas é justamente a narrativa. O diretor, auxiliado pelo roteirista, o diretor de fotografia, o montador, o designer de produção, o compositor, o elenco, enfim, tem que saber narrar para fazer o público crer em seu filme, por mais absurdo que possa parecer o universo em que ele se passa.

    A base do filme de Ang Lee – e do livro de Martel – é justamente esta: fazer acreditar. Não em Deus, como propõe a premissa, mas acreditar na história que está sendo contada, por mais fantásticas que algumas de suas passagens sejam. Acreditar, nesse sentido, não tem nada a ver com fatos. Se aconteceu ou não, pouco importa.

    Ainda que Lee acabe fazendo um filme de mensagem, com um desfecho didático, suas escolhas são formidáveis na maior parte do tempo. O voice-over do protagonista adulto (Irrfan Khan, finalmente deixando de ser coadjuvante numa produção fora de seu país) está presente em toda a introdução e parte do segundo ato, quando Pi embarca rumo ao Canadá com a família. A partir da magnífica cena do naufrágio, sua voz só voltará a aparecer bem mais adiante, no exato momento em que Lee precisa nos “trazer de volta” para concluir seu argumento (que é onde surgirá, finalmente, o tema recorrente da obra do diretor: sentimentos e emoções reprimidos, que aqui explodem numa fala de singela e sincera comoção do protagonista).

    Esta é a primeira experiência de Lee com o 3D e as imagens que exploram bem o potencial fotográfico da tecnologia causam um maravilhamento que só uma tela gigante e projeção cristalina são capazes de proporcionar ao espectador. Lee, como cineasta sutil, objetivo e elegante que é, não parece interessado apenas na profundidade de campo, mas usa o 3D para explorar também a tridimensionalidade dos detalhes, como, por exemplo, no impressionante close-up do tigre no barco, quando Pi levanta uma parte da lona para espiar e encarar a fera. É um uso pontual e de grande impacto sensorial. O mesmo pode ser dito dos planos abertos em que Pi aparece minúsculo no meio do oceano espelhado, ao entardecer ou à noite.

    Não que Lee resista aos efeitos lúdicos do 3D. Se por um lado a cena da baleia, vendida no trailer do filme, decepcione um pouco (continua sendo uma cena linda, mas sem o 3D também o seria), existem outros momentos em que o cineasta brinca com o gimmick de fazer as coisas saltarem da tela e assustarem o espectador. Um desses momentos, inclusive, fatalmente perderá seu efeito real devido à projeção não adequada do filme. É a cena dos peixes voadores, em que Lee muda a razão de aspecto para dar a impressão de que os peixes estão efetivamente saindo do quadro.

    À exceção de duas cenas, todo o filme é projetado na razão 1.85:1, que é o tamanho padrão da maioria das telas de multiplexes e de televisores full HD. Na sequência em que o cardume de peixes voadores passa pelo barco de Pi, a razão muda para o formato scope 2.35:1. Numa projeção correta, a sensação é a de que os peixes estão saltando do próprio quadro do filme, uma vez que os vemos “caindo” por cima das “barras pretas” que são criadas abaixo e acima da janela.

    É um efeito curioso e divertido, de brincar mesmo com as possibilidades do 3D. Porém, é um efeito que se perde nos cinemas em que a projeção não ocupa a totalidade da tela. Aparentemente, se a sala possui uma tela mais larga (mas que não é scope), o projecionista ajusta a imagem para que a razão 1.85:1 fique centralizada. Desta forma, sobra algum espaço à direita e à esquerda. Porém, no momento em que a razão muda para 2.35:1, o resultado é semelhante ao de vermos um DVD com formato de tela letterbox 4:3 (aberração criada pela indústria de home video) em uma TV widescreen.


    Formato correto, em 2.35:1.

    Formato errado, com 2.35:1 contido numa janela menor.

    Tendo visto o filme duas vezes, em dois cinemas diferentes, eu pude fazer a comparação e atesto que é um problema técnico da sala e que falha com a intenção do diretor. Para se ter uma ideia mais clara, mas, infelizmente, sem o efeito 3D, este link disponibiliza a cena em questão, com a mudança de razão de aspecto. Veja o vídeo em tela cheia e você terá uma ideia melhor de como é a projeção correta.

    O outro momento do filme em que Lee muda a razão de aspecto surge mais adiante, quando vemos uma baleia passando por baixo do barco de Pi num dos vários planos plongée usados pelo diretor (aliás, o plongée também é bastante utilizado por Martin Scorsese em “A Invenção de Hugo Cabret” para o efeito 3D). É quando a tela é “cortada” para 1.33:1, o formato quadrado. Usualmente, é uma opção dos diretores para delimitar o espaço da ação, tornar a cena claustrofóbica, mas que aqui surge como opção estética de função narrativa não muito clara.

    Sejam todos esses efeitos lúdicos, práticos, diegéticos ou gratuitos, “As Aventuras de Pi” é cinema espetáculo em boa forma, e que mostra que, aos poucos, o público que acreditou que um homem pode voar, que um tubarão mecânico assusta (e muito) e que uma Delorean pode se transformar numa máquina do tempo, pode também acreditar que um tigre e um menino conviveram em um barco à deriva. Isso porque os efeitos digitais, desenvolvidos pela Rhythm & Hues Studios, enfim voltaram a mostrar sinais claros de evolução depois do Gollum de “O Senhor dos Anéis”. Ou você acredita que Richard Parker esteve mesmo naquele barco?

    Eu acreditei.

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