por RENATO SILVEIRA
Entre tantos pontos positivos que podem ser levantados sobre “O Escafandro e a Borboleta”, o principal talvez seja o fato de o protagonista ser um personagem crível, mesmo tendo vivido uma história que beira o fantástico. Baseado na autobiografia de Jean-Dominique Bauby, o filme narra a trajetória deste sujeito a partir do momento em que ele acorda do derrame que resultou na paralisia quase total de suas funções motoras. Mesmo vivendo numa condição delicada e dependendo dos cuidados de enfermeiros até mesmo para mexer a língua, ele realizou a proeza de escrever um livro somente se comunicando com o piscar de um dos olhos.
Um dos fatores que dá ao filme um senso de realidade muito sincero é o roteiro de Ronald Harwood (“O Pianista”), que não tenta criar alguma espécie de pecado na vida de Bauby para que ele seja castigado pela doença. Através de flashbacks, vemos que o protagonista era um bom pai e um bom filho e, mesmo que tenha trocado a esposa por outra mulher, não foi um canalha com ela. Se há algum motivo prévio por trás do AVC que ele sofre, como seu histórico de saúde, o filme não se preocupa em abordá-lo. E nem deveria: o principal aqui é o que Bauby tirou dessa experiência extrema que viveu, assim como você ou eu poderia tirar de uma experiência marcante, mesmo que em menor dimensão.
O que torna esse homem tão fascinante e intrigante não é a condição em que ele se encontra ou a sua forma de se comunicar, mas, sim, o fato de ele não ter desistido. Mesmo que o desejo de renunciar à vida tenha surgido (o que é compreensível em sua situação), ele não cedeu. Coube, então, ao diretor norte-americano Julian Schnabel (que parece trabalhar mais como um cineasta europeu), aqui em seu terceiro longa (“Basquiat” e “Antes do Anoitecer” vieram antes), contar a história de Bauby de uma maneira inventiva. Fazendo uso de uma combinação perfeitamente justificável de plano subjetivo com narração em off, Schnabel narra grande parte do filme através do ponto de vista, de ambos os olhos, do protagonista, o que dá ao espectador uma noção de como ele teria enxergado o mundo do leito do hospital e da cadeira de rodas. É através desse método que Schnabel representa, de uma forma genial, o diálogo de Bauby com as enfermeiras, médicos, familiares e visitas, utilizando o já difundido recurso de dar “pálpebras” à câmera. Note, por exemplo, como ele transmite a angústia de Bauby ao ter que dar uma resposta, quando pisca demoradamente para dizer um “sim”.
O diretor também entende que não poderia criar enquadramentos de composição harmoniosa ali, já que tem que fazer a câmera se comportar como o olhar de um homem naquele estado. É exatamente por prezar pela imperfeição, deixando muitas vezes os rostos dos atores fora de quadro e criando ângulos obtusos, que seu trabalho aqui é brilhante. Ao mesmo tempo, a beleza que Schnabel extrai desses planos subjetivos ganha um quê de poesia. Não apenas pela criação de metáforas visuais (como o próprio escafandro do título ou uma geleira que pode suscitar mais de uma interpretação), mas por passar a impressão de que, por ter no olho esquerdo e na imaginação suas únicas portas para o mundo, Bauby se esforça para enxergá-lo (ou lembrá-lo, ou recriá-lo...) da melhor forma possível.
A licença artística de dar ao público acesso aos pensamentos de Bauby também funciona muito bem, pois complementa a experiência de “ser” o personagem – além, claro, de a narração em off representar o cérebro, o segundo órgão que ainda funcionava perfeitamente em seu corpo. Aliás, é através desse recurso que o bom humor de Bauby surge em momentos inusitados, quando a platéia pode não se sentir a vontade para rir.
Nas cenas que não são subjetivas, Schnabel também se sai muito bem, especialmente na criação de flashbacks envoltos por uma terna camada de nostalgia – sentimento que certamente vai surgir caso você esteja envolvido com o filme e com o personagem. Tome como exemplo a cena em que Bauby faz a barba do pai, uma das mais delicadas que o cineasta obtém. São esses momentos que medem o grau de identificação do espectador com o filme, pois são responsáveis por fornecer o background do personagem, desenvolvê-lo e levantar aqueles pontos em que você se correlaciona com a vida dele. A verdadeira carga emotiva do filme está aí, e não na compaixão pela condição de vida de Bauby.
E não há como não falar da performance de Mathieu Amalric, talvez na atuação de uma carreira. A maneira como ele consegue expressar suas emoções apenas movimentando o olho e sem mexer os músculos da face é algo capaz de deixar em dúvida a credibilidade de uma premiação como o Oscar, a qual ele sequer foi indicado. A cena em que Bauby recebe a ligação da namorada no momento em que sua esposa está no quarto é um dos melhores momentos do ator.
Um daqueles filmes que fazem você sair do cinema dando mais valor à vida apesar de todos os problemas, “O Escafandro e a Borboleta” consegue subir um degrau além. Depois de ver o que Jean-Dominique Bauby teve que enfrentar após sofrer o derrame, o simples fato de estar ali, na sala de projeção, diante daquele filme, já deve ser valorizado.
Entre tantos pontos positivos que podem ser levantados sobre “O Escafandro e a Borboleta”, o principal talvez seja o fato de o protagonista ser um personagem crível, mesmo tendo vivido uma história que beira o fantástico. Baseado na autobiografia de Jean-Dominique Bauby, o filme narra a trajetória deste sujeito a partir do momento em que ele acorda do derrame que resultou na paralisia quase total de suas funções motoras. Mesmo vivendo numa condição delicada e dependendo dos cuidados de enfermeiros até mesmo para mexer a língua, ele realizou a proeza de escrever um livro somente se comunicando com o piscar de um dos olhos.
Um dos fatores que dá ao filme um senso de realidade muito sincero é o roteiro de Ronald Harwood (“O Pianista”), que não tenta criar alguma espécie de pecado na vida de Bauby para que ele seja castigado pela doença. Através de flashbacks, vemos que o protagonista era um bom pai e um bom filho e, mesmo que tenha trocado a esposa por outra mulher, não foi um canalha com ela. Se há algum motivo prévio por trás do AVC que ele sofre, como seu histórico de saúde, o filme não se preocupa em abordá-lo. E nem deveria: o principal aqui é o que Bauby tirou dessa experiência extrema que viveu, assim como você ou eu poderia tirar de uma experiência marcante, mesmo que em menor dimensão.
O que torna esse homem tão fascinante e intrigante não é a condição em que ele se encontra ou a sua forma de se comunicar, mas, sim, o fato de ele não ter desistido. Mesmo que o desejo de renunciar à vida tenha surgido (o que é compreensível em sua situação), ele não cedeu. Coube, então, ao diretor norte-americano Julian Schnabel (que parece trabalhar mais como um cineasta europeu), aqui em seu terceiro longa (“Basquiat” e “Antes do Anoitecer” vieram antes), contar a história de Bauby de uma maneira inventiva. Fazendo uso de uma combinação perfeitamente justificável de plano subjetivo com narração em off, Schnabel narra grande parte do filme através do ponto de vista, de ambos os olhos, do protagonista, o que dá ao espectador uma noção de como ele teria enxergado o mundo do leito do hospital e da cadeira de rodas. É através desse método que Schnabel representa, de uma forma genial, o diálogo de Bauby com as enfermeiras, médicos, familiares e visitas, utilizando o já difundido recurso de dar “pálpebras” à câmera. Note, por exemplo, como ele transmite a angústia de Bauby ao ter que dar uma resposta, quando pisca demoradamente para dizer um “sim”.
O diretor também entende que não poderia criar enquadramentos de composição harmoniosa ali, já que tem que fazer a câmera se comportar como o olhar de um homem naquele estado. É exatamente por prezar pela imperfeição, deixando muitas vezes os rostos dos atores fora de quadro e criando ângulos obtusos, que seu trabalho aqui é brilhante. Ao mesmo tempo, a beleza que Schnabel extrai desses planos subjetivos ganha um quê de poesia. Não apenas pela criação de metáforas visuais (como o próprio escafandro do título ou uma geleira que pode suscitar mais de uma interpretação), mas por passar a impressão de que, por ter no olho esquerdo e na imaginação suas únicas portas para o mundo, Bauby se esforça para enxergá-lo (ou lembrá-lo, ou recriá-lo...) da melhor forma possível.
A licença artística de dar ao público acesso aos pensamentos de Bauby também funciona muito bem, pois complementa a experiência de “ser” o personagem – além, claro, de a narração em off representar o cérebro, o segundo órgão que ainda funcionava perfeitamente em seu corpo. Aliás, é através desse recurso que o bom humor de Bauby surge em momentos inusitados, quando a platéia pode não se sentir a vontade para rir.
Nas cenas que não são subjetivas, Schnabel também se sai muito bem, especialmente na criação de flashbacks envoltos por uma terna camada de nostalgia – sentimento que certamente vai surgir caso você esteja envolvido com o filme e com o personagem. Tome como exemplo a cena em que Bauby faz a barba do pai, uma das mais delicadas que o cineasta obtém. São esses momentos que medem o grau de identificação do espectador com o filme, pois são responsáveis por fornecer o background do personagem, desenvolvê-lo e levantar aqueles pontos em que você se correlaciona com a vida dele. A verdadeira carga emotiva do filme está aí, e não na compaixão pela condição de vida de Bauby.
E não há como não falar da performance de Mathieu Amalric, talvez na atuação de uma carreira. A maneira como ele consegue expressar suas emoções apenas movimentando o olho e sem mexer os músculos da face é algo capaz de deixar em dúvida a credibilidade de uma premiação como o Oscar, a qual ele sequer foi indicado. A cena em que Bauby recebe a ligação da namorada no momento em que sua esposa está no quarto é um dos melhores momentos do ator.
Um daqueles filmes que fazem você sair do cinema dando mais valor à vida apesar de todos os problemas, “O Escafandro e a Borboleta” consegue subir um degrau além. Depois de ver o que Jean-Dominique Bauby teve que enfrentar após sofrer o derrame, o simples fato de estar ali, na sala de projeção, diante daquele filme, já deve ser valorizado.
nota: 10/10 -- veja no cinema e compre o DVD
O Escafandro e a Borboleta (Le Scaphandre et le Papillon, 2007, França/EUA)
direção: Julian Schnabel; com: Mathieu Amalric, Emmanuelle Seigner, Marie-Josée Croze, Anne Consigny, Patrick Chesnais, Niels Arestrup, Olatz López Garmendia, Jean-Pierre Cassel, Marina Hands, Max von Sydow; roteiro: Ronald Harwood (baseado na autobiografia de Jean-Dominique Bauby); produção: Kathleen Kennedy, Jon Kilik; fotografia: Janusz Kaminski; montagem: Juliette Welfling; música: Paul Cantelon; estúdio: Pathé, France 3 Cinéma; distribuição: Europa Filmes. 112 min
direção: Julian Schnabel; com: Mathieu Amalric, Emmanuelle Seigner, Marie-Josée Croze, Anne Consigny, Patrick Chesnais, Niels Arestrup, Olatz López Garmendia, Jean-Pierre Cassel, Marina Hands, Max von Sydow; roteiro: Ronald Harwood (baseado na autobiografia de Jean-Dominique Bauby); produção: Kathleen Kennedy, Jon Kilik; fotografia: Janusz Kaminski; montagem: Juliette Welfling; música: Paul Cantelon; estúdio: Pathé, France 3 Cinéma; distribuição: Europa Filmes. 112 min
4 comentários:
BELÍSSIMO! Alguns filmes conseguem transcender o original de forma brilhante. O Escanfandro e a Borboleta é um claro exemplo desses. Schnabel, Amalric, uma fotografia genial e um roteiro persuasivo mostram que ainda há vida no cinema, basta que se queira realizá-la.
Discutir a mídia? Acesse
http://robertoqueiroz.wordpress.com
Vejo amanhã.
Renato, pode me dizer se terá pré-estréia de Batman, TDK?
;)
Dani, não fui avisado de nenhuma pré-estréia, infelizmente. Só se alguma empresa fizer daquelas sessões fechadas (para assinantes de jornal, por exemplo). Aqui em BH, vai ter cabine na terça-feira.
[]s!
Renato, sinto, mas vou ter que discordar: esse filme é uma grande porcaria. Tá, a estética é brilhante, mas não sou do tipo de pessoa que considera isso quando o Schnabel força a mão durante todo o filme, praticamente gritando "chora, p@#$%, chooooora!!!!". Só faltou espremer uma cebola nos meus olhos, eu hein...
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