Batman - O Cavaleiro das Trevas

por
  • RENATO SILVEIRA em
  • 22 julho 2008


  • por RENATO SILVEIRA

    Minha teoria está provada. Demonstrei que não há diferença entre mim e outro qualquer. Só é preciso um dia ruim para reduzir o mais são dos homens a um lunático. Essa é a distância entre o mundo e eu... Apenas um dia ruim.” - da HQ “Batman – A Piada Mortal”, de Alan Moore.

    Nesses dias em que violência e sobrevivência são palavras que não apenas rimam, mas praticamente se pertencem nas capas dos jornais e em noticiários na TV, é mais do que apropriado que um personagem como o promotor público Harvey Dent seja quase um protagonista em “Batman – O Cavaleiro das Trevas”. Utilizando uma moeda como pretexto para decidir dilemas no “cara ou coroa”, ele tem como lema a máxima: “Cada um faz a sua própria sorte.” Mas que sorte é essa quando a barbárie da criminalidade envolve até mesmo aqueles que deveriam zelar pelo cumprimento da lei e a segurança da população?

    Não, eu não vou iniciar aqui uma discussão sobre a escalada da violência e a corrupção policial. Esses são temas já estabelecidos, dos dois lados da tela, quando o filme tem início. A figura do Homem-Morcego já está instituída e Gotham vê nele exatamente aquilo que Bruce Wayne projetou em “Batman Begins”: um símbolo que, através de um exemplo dramático, levou as pessoas a respeitá-lo e os criminosos a temê-lo. Não só isso: levou outros como ele, ansiosos por fazer justiça com as próprias mãos, a imitá-lo. O que está em debate agora é justamente o que pode ser feito, por cidadãos, políticos, policiais e, claro, o super-herói, para conter a violência e salvar Gotham, representação do mal conjurado do mundo. E onde esta continuação hiperproduzida e rotulada como um sucesso predestinado se torna tão distinta entre tantos outros filmes sobre justiceiros mascarados, alados, mutantes, é em sua antítese: o que este Batman nos diz é que o mundo não precisa de heróis.

    O entrave disputado por Bruce Wayne com o próprio Batman é um tema que se sobressai, uma vez que ele vê sua idealização de justiça se reverter e colocar em risco as pessoas mais próximas e também a segurança de Gotham como um todo. O herói que decide abandonar o fardo não é assunto inédito: também nos segundos filmes do Superman e do Homem-Aranha, vimos esses personagens se tornarem indivíduos comuns, só que por motivos pessoais. Batman também tem motivos pessoais, mas sua razão é essencialmente política.

    Uma vez que a população passa a depositar nos ombros do herói a solução para acabar com a violência, ele se torna a imagem da segurança. Mas o que o diretor-roteirista Christopher Nolan (juntamente com seu irmão Jonathan Nolan, com quem assina o roteiro, além de David S. Goyer, co-autor do argumento) tenta mostrar é que não é de um vigilante mascarado que este mundo realmente precisa, mas, sim, de pessoas que possam restabelecer a justiça e a ética por meios corretos e que não precisem se esconder. Não é gratuita a insistência quase obsessiva de Nolan em aproximar o universo onde o Coringa existe daquele habitado pelo assassino do Zodíaco. Sua abordagem realista, que adota a estética de um filme policial e se recusa a retratar Gotham como uma cidade de arquitetura estilizada, agora até mais do que no primeiro filme, faz pleno sentido, uma vez que seu objetivo é dialogar e não apenas impressionar.

    O que faz de “O Cavaleiro das Trevas” mais do que um “filme de super-herói”, ou mesmo mais do que um thriller policial, é que Nolan cria uma peça conceitual que coloca a dimensão legitimada de “Batman Begins” a serviço de questionamentos relevantes sobre o mundo em que vivemos. Ele articula o clássico duelo do herói contra seu arquiinimigo de forma a refletir sobre a dinâmica atualíssima entre aqueles que detêm o poder de governar e os cidadãos que eles acabam por manipular. Por isso, Dent se torna o pivô na estratégia do Coringa, que é provar que, no fundo, todo mundo pode cair diante do desespero, até mesmo o mocinho.

    O Coringa (interpretado por Heath Ledger, um ator que se foi muito cedo e cuja atuação minimalista, que se desdobra em função da sociopatia do personagem, só nos faz lamentar ainda mais sua partida) é alguém que foi capaz de enxergar de fora o jogo político entre a polícia, a justiça e os criminosos. O problema é que ele usa sua genialidade para anarquizar Gotham, levá-la ao caos, ao invés de tentar reinventá-la. É isso que o torna um terrorista e o diferencia de um revolucionário. Numa relação ainda dentro dos quadrinhos, podemos dizer que o Coringa é o oposto do protagonista de “V de Vingança”. Ambos agem de formas semelhantes: usam a mídia, planejam atentados, tentam fazer as pessoas enxergarem toda a merda em volta delas. Mas V quer salvá-las, ele acredita nelas, ao passo que o Coringa é um niilista, totalmente descrente em qualquer possibilidade de salvação. E é usando o mesmo conceito da manipulação do medo visto em “Batman Begins”, só que em outro contexto, que o vilão consegue articular todas as peças do tabuleiro em seu favor. A citação no início desse texto se refere ao Coringa, mas também poderia ser direcionada a Dent ou mesmo ao Batman: eles formam um trio de aberrações, representações extremas de pessoas que se rebelam contra um suposto acaso que transforma suas vidas.

    O que é interessante é que o próprio filme parece se comportar como a sorte lançada pelo “cara ou coroa” de Harvey Dent. A partir de determinado momento, quando o promotor dá indícios de que está prestes a se corromper, o filme muda de tom e de ritmo. Repare até mesmo na forma como Aaron Eckhart aparece enquadrado, com metade do rosto na sombra, antes de sua derradeira transformação. É como se ali a moeda fosse jogada para cima e caísse virada para o outro lado. Enquanto a primeira parte do filme constrói toda uma possibilidade de esperança, a segunda é a demolição de um sonho, uma descida ao inferno guiada por um demônio com maquiagem de palhaço.

    Nesta segunda parte, a montagem de Lee Smith é exemplar na maneira como trabalha a narrativa multi-plot, que nunca se concentra em um só enredo. Desde o início, o filme se comporta como se fosse uma crônica de tudo o que acontece em Gotham naquele momento: ao mesmo tempo em que Bruce Wayne projeta seu novo uniforme com Lucius Fox, Harvey Dent e Rachel Dawes traçam uma estratégia para prender os líderes das principais organizações criminosas da cidade, enquanto o Coringa arquiteta seu plano e Jim Gordon tenta localizá-lo. Mas na hora final do filme, essas tramas simultâneas, que estão sempre ligadas umas com as outras, passam a correr quase em tempo real. A sensação de urgência é alimentada ainda pela incessante trilha sonora de Hans Zimmer e James Newton Howard, que assume tons de ópera e parece estar naturalmente intrínseca à construção de cada cena e ao desenvolvimento da trama. Nolan, claro, também muda de postura, já que se vê obrigado a abandonar planos corriqueiros de diálogo para se comportar como um maestro que precisa manter a harmonia no apogeu da sinfonia. Nolan é um cineasta que se posiciona atrás da história, não quer aparecer mais do que ela. Sua preocupação parece ser principalmente dirigir o todo, sem dar atenção especial a um ou outro aspecto. Assim, o estilo passa a ser coletivo.

    O que está no coração do filme é que o mundo não precisa de super-heróis, mas de humanidade. Nesse sentido, e numa comparação não tão estapafúrdia, Harvey Dent pode ser visto como a representação de uma figura política como Robert F. Kennedy: alguém que inspira confiança, mas que acaba saindo de cena devido a adversidades que fogem ao seu controle. Nolan trabalha o tempo todo com a noção de que não só vale a pena, como é necessário acreditar no lado bom de cada um, acreditar que não somos apenas animais. Há uma cena que define bem esse ponto de vista, quando a música sobe a um tom angustiante e uma decisão sensata poupa milhares de vidas. Existem várias seqüências de ação, com socos, quedas, tiros e barulho no filme, todas elas ótimas. Mas é este clímax, sem nenhuma explosão, que é realmente genial.

    nota: 10/10 -- veja no cinema e compre o DVD

    Batman – O Cavaleiro das Trevas (The Dark Knight, 2008, EUA)
    direção: Christopher Nolan; com: Christian Bale, Heath Ledger, Aaron Eckhart, Michael Caine, Maggie Gyllenhaal, Gary Oldman, Morgan Freeman, Monique Curnen, Cillian Murphy, Chin Han, Nestor Carbonell, Eric Roberts, Anthony Michael Hall, Michael Jai White, William Fichtner; roteiro: Christopher Nolan, Jonathan Nolan (argumento de Christopher Nolan e David S. Goyer); produção: Christopher Nolan, Charles Roven, Emma Thomas; fotografia: Wally Pfister; montagem: Lee Smith; música: Hans Zimmer, James Newton Howard; estúdio: Warner Bros. Pictures, Legendary Pictures; distribuição: Warner Bros. Pictures. 152 min

    12 comentários:

    Felipe Fonseca disse...

    Ótima análise!

    Anônimo disse...

    Valeu, Renato...
    Ainda não vi (pra variar, né), mas assim que ver, se achar que tenho algo relevante a dizer/contra-argumentar, retorno.

    xlucas

    Anônimo disse...

    Muito boa a crítica, Renato.
    Quanto ao coringa, tava doido pra ver a interpretação do Ledger, mesmo antes de sua morte, pois saberia que com a direção do Nolan sairia, no mínimo, uma coisa interessante. E nesse sentido não me decepcionei, mas sei lá... Não sei se foi a expectativa, todos esses comentários sobre um Oscar póstumo e tal. Adorei o coringa dele. O melhor que já vi e acredito que do jeito que deveria ser feito (afinal o Jack Nicholson fez uma variação dele mesmo no do Tim Burton), mas acho meio injusto esse destaque tão grande à interpretação dele (o que era esperado, devido a sua morte prematura), mas sei lá (de novo)... O filme é muito maior do que a interpretação dele, maior do que o personagem. Acho injusto o que andam dizendo que o destaque do filme é o coringa e ponto final.
    Enfim...
    Aliás, que elenco!!! Como é bom ver bons atores fazendo o que só bons atores sabem fazer... E que bela troca da Sra Tom Cruise pela Gyllenhaal!!!

    RENATO SILVEIRA disse...

    Thiago, concordo plenamente: falar que o filme é o Coringa é muito pouco. O Coringa é uma peça fundamental, mas o filme não é sobre ele, tal como não é apenas sobre o Batman. É o conflito entre eles, é a batalha por Gotham, é a necessidade de se ter um herói... E por aí vai. Mas acaba que aconteceu justamente o que alguns de nós temíamos: a mídia em geral se voltou para o fato de Ledger estar morto (e nem é o último filme dele, tem o do Terry Gilliam ainda vindo aí). Acho o papo do Oscar póstumo meio furado até... Coisa sensacionalista.

    []s!

    pseudo-autor disse...

    VISCERAL!!! Só não repito várias vezes a palavra para não soar repetitivo e cansar o meu comentário. Finalmente alguém realizou meu sonho e transpôs o universo das hqs pra sétima arte do jeito que elas merecem. Ledger no apogeu do talento e do sadismo. Perfeito. Nada mais há para ser dito!

    Discutir Mídia e Cultura?
    http://robertoqueiroz.wordpress.com

    Diego Rodrigues disse...

    Sim, concordo com o texto. Principalmente na parte do enquadramento de Harvey Dent em sua última e decisiva cena.

    Postei lá no blog Cinemania sobre Viagem ao Centro da Terra e Batman, se puder conhece-lo, ficarei grato desde já.

    Abraços e continua com o Cinematório!

    Anônimo disse...

    O elenco todo merece destaque! Não vejo um oscar para o Heath, filmes com estréia até pouco mais da metade do ano são menos lembrados à época das nomeações; se a crítica se render a ele no final do ano, pode ser que aumentem as chances enormemente. Agora um SAG de melhor elenco seria muito, mas muito merecido e dificilmente outro filme nesse ano terá um elenco tão inspirado! Exceto por um Eric Roberts inexpressivo, todo o resto consegue ser de bom a excepcional!
    Ah e após ouvir a trilha sonora em casa, passei a admirá-la! A principio havia achado uma cópia da trilha de Begins (que mesmo não sendo um James N Howard em melhor forma, é boa pacas!), mas com calma vi que apenas alguns elementos temáticos estão presentes e o trabalho é muito bom!

    Anônimo disse...

    Renato, acabei de ver Speed Racer, e postei em meu blog uma reflexão/crítica sobre o filme e a "espetacularização extrema" do cinema atual. Mas como o texto é meio longo achei melhor não posta-lo aqui. Caso se interesse dê uma lida lá no meu blog:
    http://womni.blogspot.com/

    xlucas

    spring disse...

    Parabéns pelo Texto. Embora o filme se mantenha bastante fiel à banda desenhada de Bob Kane, terminou por não corresponder às minhas expectativas, continuando a preferir os dois realizados pelo Tim Burton.
    cumprimentos cinéfilos
    rui luis lima

    Anônimo disse...

    Renato "postei" mais um texto em meu blog: " O Cinema Wireless";
    que prossegue com o tema do "Escravidão do Espetaculo" no cinemão contemporaneo. Na realidade essa reflexão desse novo texto é anterior ao do filme Speed Racer, pois já tinha postado essa observação que faço nele em outros foruns. Mas aproveitando o fato de ter um blog agora, resolvi publica-lo também; e também devido ao sucesso do 1º texto (afinal vc visitou o meu blog, leu meu texto e até comentou... isso pra mim é sucesso de bilheteria :>)...)
    Bem brincadeiras a parte, embora os texto sejam semelhantes, não são iguais, na realidade se complementam, acho que ficou legal (bem se eu mesmo não achar meus textos legais... :>)...
    caso se interesse:
    " O Cinema Wireless"
    http://www.womni.blogspot.com/

    Mas senão puder/quizer, esquenta não... eu entendo... a vida não para e as contas se acumulam né...
    No mais muito obrigado pela atenção e pelo carinho em comentar meu texto...
    P.S. desculpe alguns erros gramaticais e ortográficos em meus texto, muito embora eu procure poli-los, lapida-los, sempre passa algum erro, que eu quando percebo corrijo posteriormente (alías, ficarei grato se apontar algum erro).

    Valeu;
    xlucas

    Anônimo disse...

    Excelente especulação para um grande filme. Esperava que fosse bom, mas nem tanto assim. O Cavaleiro das Trevas me fez reconsiderar toda aquela "realidade" que me incomodou no Batman Begins.

    timewillcome disse...

    O que me fascina nas historias do Batman, é a forte personalidade das personagens. A força que cada um tem em suas almas.
    Batman é incorruptivel mesmo com a quantidade de sangue que corre em suas maos, ele as vezes parece sobrenatural, como prova o policial que se torna o Duas Caras.
    Coringa é sadico, doente. Todo ator que tenta entrar em sua mente acaba muito mal, mesmo sendo ficticio, ele deturpa de tal forma, que é perigoso tentar compreende-lo profundamente.
    Mesmo roteiristas de HQS tinham problemas apos imergir e nao mais submergir de sua personalidade doente e insana.
    A luta pela justiça se assemelha muito à que enfrentamos aqui no Brasil.
    Quem mora em Salvador, Rio de Janeiro, Sao Paulo, e outros centros violentos e corruptos, sabe disso, talvez tenha enxergado sua sociedade ali. Mas, na nossa realidade nao há um benfeitor disposto a prender os bandidos e acabar com a corrupçao.
    Nós acompanhamos exatamente a historia de ser corrompido...

    O filme ficou muito bem produzido, dirigido e as atuaçoes sao impecaveis. Discordo dos comentarios anteriores sobre o Oscar, foi completamente merecido, poderia ser até mais de um, pena ser póstumo.
    Nao via uma atuaçao assim, convincente, arrebatadora e poerfeita, desde que nao via mais filmes do Al Pacino, Anthony Hopkins (que pra mim é o melhor de todos).

    O filme é fantástico.
    Eu sou mais da turma que gostava dos gibis do SPAWN e o sarcastico SPIDER MAN. Mas esse Batman é de outro mundo, completamente diferente dos filmes anteriores. Principalmente do FREEZE e do anterior a este, o tal de RETURNS, que foi péssimo.

    TDK, é perfeito.

     
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