Antes de começar este texto, quero deixar claro que não sou grande conhecedor da obra de Jean-Luc Godard. O que conheço de sua filmografia é pouco para eu chegar aqui e escrever algo relevante em relação ao seu cinema. Este não é meu objetivo, na verdade. Vou apenas comentar algumas coisas interessantes que percebi em quatro de seus filmes, que assisti recentemente na mostra Indie 2003, realizada em Belo Horizonte, nesta última semana. Essa introdução, acho eu, faz-se necessária para que as palavras que se seguem não soem pretensiosas.
Para início de conversa, Godard se revelou para mim um cineasta muito mais divertido do que eu podia imaginar. Sempre que ouvia falar sobre Nouvelle Vague, associava o movimento ao cinema europeu e, logo, ao tédio total. Sim, é aquele velho preconceito de que tudo feito na Europa é chato, no Brasil é pornografia e nos Estados Unidos é legal. Paradigma besta, claro. O que não é falar sem conhecimento! Pois bem, é verdade que têm algumas coisas feitas por diretores europeus que dão um sono danado, mas é preciso dar uma chance, assistir com outros olhos. Se há um amadurecimento para o olhar do espectador, acredito que o meu não está mais tão imaturo como a alguns anos atrás. Mas, azar, não estou aqui para falar de mim. Quero falar de Godard.
“O Demônio das Onze Horas” me encantou. Não entendi o sentido desse título em português, já que o original significa “Pierrot, o louco”, referindo-se ao personagem de Jean Paul Belmondo (a partir de agora, um dos meus atores favoritos), mas isso pouco influiu na minha experiência frente ao filme. Desde as primeiras cenas, com Belmondo passando pelas salas coloridas de uma festa burguesa (é impressão minha, ou as cores foram escolhidas propositalmente para representar a bandeira da França?), até o final literalmente explosivo, tudo o que passava na tela era novo. O filme não segue em nenhum momento uma “linha reta”. A cada cena os personagens parecem dizer: “Que se dane o resto, vamos fazer algo diferente”. E quando eles parecem acomodados numa situação (a casa de praia), ficam entediados e partem para outra. Há uma cena em particular que, para mim, tornou-se síntese da revolução proposta pela Nouvelle Vague: Belmondo e Anna Karina estão dirigindo na estrada e ela diz que, para chegarem ao seu destino, ele deve seguir em linha reta toda vida. Ao ouvir isso, Belmondo vira o volante subitamente e joga o carro no mar. Ou seja, para quê seguir sempre na mesma direção? Vamos inovar! Fantástico. E o filme é cheio dessas tiradas, além de contar com um bom humor invejável, que contraria aquela coisa de “manifesto-revolucionário-político-enfadonho” que muita gente (eu incluso) tem na cabeça. Há uma cena em que Belmondo e Karina fazem uma encenação da Guerra do Vietnã para um grupo de americanos que é uma das coisas mais hilariantes que vi no cinema até hoje.
O segundo filme que eu mais gostei do Godard foi “Acossado”. Falta-me substância para discorrer sobre o filme com profundidade. E isso é incômodo, porque sempre parece que para falar de cinema europeu é obrigatório usar vocabulário rebuscado e fazer reflexões existenciais. Bom, para quem tem (ou acha que tem) uma cabeça no mesmo nível dos cineastas de lá, vão em frente. Já eu não gosto de masturbação intelectualizada. Prefiro a troca, prefiro escrever aqui e atingir alguém com minhas palavras (se consigo, vocês me dizem). Enfim, apreciei “Acossado” por ter planos-seqüência bem elaborados, diálogos inteligentes e uma trama bem resolvida. O legal do filme é que, se fosse feito em Hollywood, podia muito bem ser um desses estrelados pelo George Clooney em papel de ladrão malandro. Só que, aqui, o personagem é do Belmondo e a história, apesar de simples (homem rouba carro e foge da polícia), é ocupada com críticas políticas. Este foi o primeiro filme do Godard e o que iniciou a Nouvelle Vague. Hoje, esteticamente falando, acho que não há nada de tão revolucionário assim. Ou melhor, há sim. De “Acossado” em diante é que parece não ter existido outra desconstrução como essa. Afinal, câmera na mão deixou de ser novidade há muito tempo, mas é uma técnica ainda utilizada e, pior, vendida como nova. Enquanto assistia ao filme fiquei pensando em qual será a próxima revolução do cinema. Filmar de cabeça para baixo?
“Uma Mulher é Uma Mulher” foi o mais “simples” dos quatro Godard a que assisti. É uma comédia sobre uma mulher que quer engravidar, mas o namorado não quer. Eles vivem brigando e entra um amigo dos dois na história, que confessa estar apaixonado por ela. Mais uma vez, é uma tentativa bem sucedida do diretor em fazer algo diferente dentro de um gênero batido por Hollywood. Vejamos: “Demônio das Onze Horas” é um road movie; “Acossado” é um romance policial; e “Uma Mulher é Uma Mulher”, uma comédia romântica. Na mostra também foi exibido “Alphaville”, que é uma ficção-científica, mas não deu para assistir. Imagino o que não deve ser.
Bem, em “Uma Mulher é Uma Mulher” há cenas muito inventivas, como aquela em que o casal protagonista (Karina e Jean-Claude Brialy) briga e os dois param de se falar. O que eles fazem para continuar a discussão? Pegam livros, escolhem palavras escritas nas capas, montam frases e as mostram um para o outro. É genial. Isso, aliás, é só um reflexo da obsessão de Godard por palavras e letras. Pela literatura, enfim. Em todos os filmes a que assisti, sempre havia um letreiro, um plano de detalhe em algum cartaz, placa ou caderno, ou uma citação de algum livro ou poema. Há também referências e tomadas que mostram pinturas, sem falar no uso de música clássica. Ou seja, se o cinema pode ser considerado a reunião de todas as artes, os filmes de Godard são um perfeito exemplo para ilustrar isso.
O último filme dele que vi na mostra foi “Je Vous Salue, Marie”, que é uma versão subversiva da história de Maria e o nascimento de Jesus. Maria é uma jogadora de basquete, José é um motorista de táxi e o Anjo Gabriel é um sujeito de barba cerrada que espanca José quando este tenta tocar a “Virgem Maria”. Sinceramente, o conceito é superinteressante, mas achei este o mais cansativo filme do Godard. Algumas cenas eu realmente gostei, como a hora em que Maria “recebe” o Espírito Santo, as aparições do Anjo Gabriel, e, mais no final, as cenas com o menino Jesus. Essas últimas são as mais engraçadas, sem dúvida (impagável o garotinho fugindo e dizendo que precisa cuidar dos “negócios do pai”), o que me leva a pensar que o Godard é muito melhor quando está de bom humor. Não que eu não tenha gostado das reflexões filosóficas que ele propõe, mas, no geral, quando ele se leva menos a sério – e isso nos quatro filmes – o resultado soa bem melhor.
Um último parágrafo eu quero dedicar a Anna Karina. Deus, que mulher. Fiz uma rápida pesquisa e descobri que ela foi esposa do Godard durante cerca de cinco anos. E, não coincidentemente, os filmes da mostra estrelados por ela foram realizados enquanto eles estavam juntos. Godard devia admirá-la mesmo, pois conseguiu fazer cenas que a imortalizaram em película de tão belas. Aliás, não só Karina, mas todas as mulheres que Godard filmou nesses quatro filmes estão, sem exceções, belíssimas na tela. Em “Acossado”, há uma cena memorável em que Belmondo desafia Jean Seberg a ficar séria e não rir. A câmera fecha no rosto da atriz. Ela não resiste e abre um sorriso. Um sorriso que vale pelo filme inteiro. Talvez, um dos primeiros-planos mais belos que já vi. E se formos parar para pensar, essa pequena cena também faz refletir. Dizem que brincadeira tem hora. Pois bem, seriedade também. E Godard é um cineasta que sabe dosar isso na tela, pelo pouco que vi de sua obra. Pelo menos, sabia.
Para início de conversa, Godard se revelou para mim um cineasta muito mais divertido do que eu podia imaginar. Sempre que ouvia falar sobre Nouvelle Vague, associava o movimento ao cinema europeu e, logo, ao tédio total. Sim, é aquele velho preconceito de que tudo feito na Europa é chato, no Brasil é pornografia e nos Estados Unidos é legal. Paradigma besta, claro. O que não é falar sem conhecimento! Pois bem, é verdade que têm algumas coisas feitas por diretores europeus que dão um sono danado, mas é preciso dar uma chance, assistir com outros olhos. Se há um amadurecimento para o olhar do espectador, acredito que o meu não está mais tão imaturo como a alguns anos atrás. Mas, azar, não estou aqui para falar de mim. Quero falar de Godard.
“O Demônio das Onze Horas” me encantou. Não entendi o sentido desse título em português, já que o original significa “Pierrot, o louco”, referindo-se ao personagem de Jean Paul Belmondo (a partir de agora, um dos meus atores favoritos), mas isso pouco influiu na minha experiência frente ao filme. Desde as primeiras cenas, com Belmondo passando pelas salas coloridas de uma festa burguesa (é impressão minha, ou as cores foram escolhidas propositalmente para representar a bandeira da França?), até o final literalmente explosivo, tudo o que passava na tela era novo. O filme não segue em nenhum momento uma “linha reta”. A cada cena os personagens parecem dizer: “Que se dane o resto, vamos fazer algo diferente”. E quando eles parecem acomodados numa situação (a casa de praia), ficam entediados e partem para outra. Há uma cena em particular que, para mim, tornou-se síntese da revolução proposta pela Nouvelle Vague: Belmondo e Anna Karina estão dirigindo na estrada e ela diz que, para chegarem ao seu destino, ele deve seguir em linha reta toda vida. Ao ouvir isso, Belmondo vira o volante subitamente e joga o carro no mar. Ou seja, para quê seguir sempre na mesma direção? Vamos inovar! Fantástico. E o filme é cheio dessas tiradas, além de contar com um bom humor invejável, que contraria aquela coisa de “manifesto-revolucionário-político-enfadonho” que muita gente (eu incluso) tem na cabeça. Há uma cena em que Belmondo e Karina fazem uma encenação da Guerra do Vietnã para um grupo de americanos que é uma das coisas mais hilariantes que vi no cinema até hoje.
O segundo filme que eu mais gostei do Godard foi “Acossado”. Falta-me substância para discorrer sobre o filme com profundidade. E isso é incômodo, porque sempre parece que para falar de cinema europeu é obrigatório usar vocabulário rebuscado e fazer reflexões existenciais. Bom, para quem tem (ou acha que tem) uma cabeça no mesmo nível dos cineastas de lá, vão em frente. Já eu não gosto de masturbação intelectualizada. Prefiro a troca, prefiro escrever aqui e atingir alguém com minhas palavras (se consigo, vocês me dizem). Enfim, apreciei “Acossado” por ter planos-seqüência bem elaborados, diálogos inteligentes e uma trama bem resolvida. O legal do filme é que, se fosse feito em Hollywood, podia muito bem ser um desses estrelados pelo George Clooney em papel de ladrão malandro. Só que, aqui, o personagem é do Belmondo e a história, apesar de simples (homem rouba carro e foge da polícia), é ocupada com críticas políticas. Este foi o primeiro filme do Godard e o que iniciou a Nouvelle Vague. Hoje, esteticamente falando, acho que não há nada de tão revolucionário assim. Ou melhor, há sim. De “Acossado” em diante é que parece não ter existido outra desconstrução como essa. Afinal, câmera na mão deixou de ser novidade há muito tempo, mas é uma técnica ainda utilizada e, pior, vendida como nova. Enquanto assistia ao filme fiquei pensando em qual será a próxima revolução do cinema. Filmar de cabeça para baixo?
“Uma Mulher é Uma Mulher” foi o mais “simples” dos quatro Godard a que assisti. É uma comédia sobre uma mulher que quer engravidar, mas o namorado não quer. Eles vivem brigando e entra um amigo dos dois na história, que confessa estar apaixonado por ela. Mais uma vez, é uma tentativa bem sucedida do diretor em fazer algo diferente dentro de um gênero batido por Hollywood. Vejamos: “Demônio das Onze Horas” é um road movie; “Acossado” é um romance policial; e “Uma Mulher é Uma Mulher”, uma comédia romântica. Na mostra também foi exibido “Alphaville”, que é uma ficção-científica, mas não deu para assistir. Imagino o que não deve ser.
Bem, em “Uma Mulher é Uma Mulher” há cenas muito inventivas, como aquela em que o casal protagonista (Karina e Jean-Claude Brialy) briga e os dois param de se falar. O que eles fazem para continuar a discussão? Pegam livros, escolhem palavras escritas nas capas, montam frases e as mostram um para o outro. É genial. Isso, aliás, é só um reflexo da obsessão de Godard por palavras e letras. Pela literatura, enfim. Em todos os filmes a que assisti, sempre havia um letreiro, um plano de detalhe em algum cartaz, placa ou caderno, ou uma citação de algum livro ou poema. Há também referências e tomadas que mostram pinturas, sem falar no uso de música clássica. Ou seja, se o cinema pode ser considerado a reunião de todas as artes, os filmes de Godard são um perfeito exemplo para ilustrar isso.
O último filme dele que vi na mostra foi “Je Vous Salue, Marie”, que é uma versão subversiva da história de Maria e o nascimento de Jesus. Maria é uma jogadora de basquete, José é um motorista de táxi e o Anjo Gabriel é um sujeito de barba cerrada que espanca José quando este tenta tocar a “Virgem Maria”. Sinceramente, o conceito é superinteressante, mas achei este o mais cansativo filme do Godard. Algumas cenas eu realmente gostei, como a hora em que Maria “recebe” o Espírito Santo, as aparições do Anjo Gabriel, e, mais no final, as cenas com o menino Jesus. Essas últimas são as mais engraçadas, sem dúvida (impagável o garotinho fugindo e dizendo que precisa cuidar dos “negócios do pai”), o que me leva a pensar que o Godard é muito melhor quando está de bom humor. Não que eu não tenha gostado das reflexões filosóficas que ele propõe, mas, no geral, quando ele se leva menos a sério – e isso nos quatro filmes – o resultado soa bem melhor.
Um último parágrafo eu quero dedicar a Anna Karina. Deus, que mulher. Fiz uma rápida pesquisa e descobri que ela foi esposa do Godard durante cerca de cinco anos. E, não coincidentemente, os filmes da mostra estrelados por ela foram realizados enquanto eles estavam juntos. Godard devia admirá-la mesmo, pois conseguiu fazer cenas que a imortalizaram em película de tão belas. Aliás, não só Karina, mas todas as mulheres que Godard filmou nesses quatro filmes estão, sem exceções, belíssimas na tela. Em “Acossado”, há uma cena memorável em que Belmondo desafia Jean Seberg a ficar séria e não rir. A câmera fecha no rosto da atriz. Ela não resiste e abre um sorriso. Um sorriso que vale pelo filme inteiro. Talvez, um dos primeiros-planos mais belos que já vi. E se formos parar para pensar, essa pequena cena também faz refletir. Dizem que brincadeira tem hora. Pois bem, seriedade também. E Godard é um cineasta que sabe dosar isso na tela, pelo pouco que vi de sua obra. Pelo menos, sabia.
0 comentários:
Postar um comentário